bobinha, gamada etc

helena sarmento
2 min readApr 2, 2023

Você ia rir se eu atravessasse o quarto engatinhando em sua direção e, tenho certeza, não entenderia que estou te ensinando a engatinhar até mim. O seu suor de colônia, gotas desaguando nos vincos, os olhos de cachorro sem dono, que dó. Deus é amor mas o diabo faz aquela coisa com a língua que você gosta, os sussurros implorando por algo com a cabeça no meu colo e ninguém acreditaria se eu falasse que é você quem me domina, com o nariz gelado de madrugada e o choro frouxo e a mania esquisita de me olhar dormir, é você quem me segura pelo pulso quando as mãos estão trêmulas mas é você quem vive sem mim. Sem você as coisas acontecem, mas é difícil chamá-las de vida. É difícil chamar de vida os dias sem meu ciclone tropical, minha tempestade, minha risadinha devastadora. O universo pune os felizes demais e com você tudo dá errado pra mim, as energias se desequilibram e por isso agora está tudo bem e você não está aqui. É engraçado nosso acordo onde você implora por migalhas e eu te dou só o que quero. Porque te dou tudo. Pode ir embora se quiser, você diz. Eu sei. Não se preocupa comigo, você diz. Tá bom. Queria te chamar de amor, você diz, e não acredita na recíproca. Eu entendo, porque mal acredito que você existe. Me fizeram acreditar que coisas boas só acontecem sem a gente se dar conta, mas a gente se deu. A cidade está de testemunha que quando sentei no seu colo enquanto você dirigia bateu em nós uma tristeza súbita de saber que aquele instante ia acabar, e eu se pudesse repetir pra sempre os mesmos 20 minutos seriam aqueles no trânsito da marginal. Tenho lapsos, lembro de cenas. Lembro do caminho entre as árvores enfileiradas com o sol da manhã brilhando nas folhas, você avisou que se a gente passasse de mãos dadas por ali não tinha mais volta. Agora já era, a gente tem o mesmo cheiro. Depois que seu perfume barato impregnou no meu cabelo, já era. Já era depois do abraço de mochila nas costas e já era depois que você foi embora, a manhã foi plácida e vazia como nada nunca tinha sido antes. Uma manhã alegre de tão triste, aquela estranha sensação gostosa de descobrir uma ferida nova, a primeira manhã sem suas súplicas enquanto o café desce o pano, a primeira manhã sem o peso do seu corpo me encoxando no fogão, sem sua cara espremida lendo a pouca luz, a primeira manhã inventando você, delirando que ainda te tenho, te sonhando. Mas não se preocupa, eu vou te superar. Vou te superar te procurando pelos cantos. Vou te esperar, vira lata, até você engatinhar de volta pra mim.

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