Brilhante
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Essa história é sobre você. As circunstâncias dessa história só permitem que um tipo peculiar de pessoa se aproxime dela. Das poucas que correrão os olhos nessas palavras, você será a única capaz de entendê-la. Nessa história você não vai encontrar nenhuma mensagem oculta e nefasta, nada que te tire o sono ou agite multidões. Quer dizer, quem procura acha, mas não acho que você precise de grandes humores. Se trata apenas de uma coisa que anda acontecendo com muita frequência. Acontecendo com você. Friso que essa história é sobre você. Juro que é sobre você. E para que continue sendo sobre você seguirei algumas regras que irão lhe ajudar a levar tudo a sério.
A história é assim: era uma vez uma coisa muito cheia de pelos crescendo pelo corpo. Não sabia ao certo o que era, a que espécie pertencia. O único reflexo através do qual pode se ver é à margem do curso d’água que entrecorta a floresta, e este era de água tão turva que só podia ver refletidos vultos. Quando se olhava no riacho, via um garrancho com presas o orelhas pontudas, mas não ia muito longe disso. Os pelos desgrenhados eram estandartes-máscara de sua condição selvagem.
A primeira regra dessa história é a honestidade brutal. É um recurso para que se sinta o que não se pode ver; sentir os membros peludos roçando-se nas dobras e o vento ínfimo na ponta das orelhas quando quase tocam as folhas, por exemplo. Preciso também que você use da honestidade brutal para aceitar todas as mentiras que você conta. Você mente muito. Por favor, pense nas últimas três mentiras que contou a alguém ou a si mesmo.
Prosseguimos: um dia, passeando pela floresta virgem, a coisa vê, de longe, uma luz ofuscante por detrás das árvores. Segue a luz obstinadamente como um predador à sua presa, sentindo a floresta ficar mais e mais rala. Este lugar não é mais a floresta. Tinha diante de si um penhasco que parecia descer até o infinito, e sobre o abismo uma ponte estreita de pedras azuis. A luz cegante do sol estava na linha do horizonte. A despeito de coragem, a curiosidade lhe causou um comichão nas juntas e, quando se deu por si, você já pisava nas pedras azuis. A sua curiosidade é incontrolável.
No meio da ponte havia um abismo estreito. Uma fileira das pedras parecia ter sido removida de propósito, como a interditá-la. Sem grandes esforços você pulou ao outro lado. Enquanto caminhava, todo o pelo de seu corpo caiu. Essa é a segunda regra: algo fica para trás quando se cruza uma ponte. Precisamos desse recurso para que a honestidade brutal fique um pouco mais ambígua e traiçoeira. A partir de agora você não deve mais confiar em sua intuição. Lembre-se disso.
Voltando: no fim da ponte havia uma cerca branca, que guardava um vasto campo de grama rente ao chão. Algumas árvores, um lago raquítico. Era uma mal-executada emulação da floresta. Se chamava Fazenda.
Esse lugar novo, a Fazenda, propiciava a você um novo tipo de contemplação, então achou bom. Era uma maquete em tamanho real: cada elemento de natureza era posicionado de forma tão caricata e obtusa que você se flagrava rindo para as pedras falsas, para os pássaros mecânicos. Você vê também um animal que tange outros animais. O que tange é marrom, os tangidos pretos; em ambos os pelos se enrolam como caracóis. O animal que tange, extasiado, esbraveja com os tangidos, morde-lhes os calcanhares, os cobre de insultos e empurrões. O bicho marrom lhe vê e se apresenta, com polidez: Olá. Sou o Brilhante. Você deve ser o novo cachorro. É um grande prazer conhecê-lo. Você, com surpresa e algum deboche, lhe responde: Me perdoe, mas não sou o mencionado cachorro. Sou um animal selvagem.
Uma última regra: tudo que é importante será esquecido. Esta regra serve para esconder a parte mais importante da história e para que o tempo se desenrole com mais lacunas.
Você não se lembra direito, mas aceitou ser um cachorro. Hoje em dia pastoreia os bichos encaracolados e o faz com graça e leveza. É um bom pastor, embora não seja um cachorro. Um dia, Brilhante cruzou a ponte de pedras azuis e a destruiu logo em seguida. Quando chove, você brinca nas poças de lama com cuidado para não ver seu próprio reflexo numa delas.
Essa aqui é a primeira parte de um conto que estou escrevendo faz um tempão e ainda não sei direito aonde ele está indo. Queria agradecer a todos que vêm aqui ler essas coisas que eu escrevo. Fico aqui escondida lendo tudo que vocês escrevem, também.