Cantiga de olho mágico

helena sarmento
2 min readAug 21, 2024

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Carros, pássaros, calor mas de repente é noite. Eu sento e espero. Cadê eles? Lá vem M.J. em seus passos de gata. Café com leite, a louça é frágil, a colher de chá sino budista, tim! no pires. M.J. diagnostica: sou desconectada da realidade. Aceno pra ela pela janelinha do meu foguete.

Hoje tomei um susto quando anoiteceu. Tarde da noite C. me interfona, alarmado. Amiga, tá escutando isso? Amigo, sua voz é meu travesseiro. Conversamos muito porque tudo é importante. Amiga, é tipo uma música. A lua beberica da nossa juventude. Devolve o isqueiro, te amo.

Outro dia, à tarde, E. e o namorado comem pão sírio na cozinha. A comida é meu orgulho e deleite. Às vezes J. também vem. Macambúzia, astuta e linda; dependendo do dia ela será um incenso ou um peido. Às vezes todos estamos aqui, numa festa acidental regada a disk-bebida. Alguns de nós bebem pouco e dormem cedo. O resto está com dificuldades profissionais.

History Channel, a vizinha lava a varanda mergulhada em pensamentos. Nessa vizinhança gritamos de prazer e ódio, fritamos ovo e fazemos filhos. Ouvimos som alto, reclamamos de som alto e penduramos luzes de natal.

Quem quiser verá o cabelo das minhas visitas grisalheando ao longo das noites. Igualmente o vapor da panela vinca rugas de choro e riso em meu rosto. Cada vez que abro a porta M.J., C., J, e E. estão diferentes, eu que não percebo. Minha mãe, minha irmã, o síndico, os motoboys, o moço do gás, os cachorros e os gatos e o lagarto que vi entrando aqui, as crianças e os velhos e os eletrodomésticos e a caixa d’água, os carros e pombos e demais pragas urbanas: um nó frouxo nos amarra e eu não percebo. Eis a sinfonia secreta e à vista que não escuto, mas danço.

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