disney dos adultos
Mia Dina é uma fada murcha e ensebada, com roupinhas esfarrapadas e um sorriso triste rasgando a cara. Ela voa rodeada de fumaça e fuligem de cigarro, as asas esburacadas levantam o pó fétido a cada voo. Mia Dina ofega enquanto voa segurando pela orelha seu milenar urso de pelúcia, que olha paralisado o mundo em volta com seus horripilantes olhos de vidro, vidro arranhado e embaçado como os da própria dona. Chama-se Ursinho. A criatividade de Mia Dina é limitada a diminutivos e músicas de 2 acordes.
Ela vem sempre por trás e nunca se anuncia. Senta-se em seu ombro e lá fica, às vezes por dias a fio. Enquanto isso, você sonha acordado. Você sonha sonhos decadentes de glórias improváveis e historinhas açucaradas de perdão, glória e vento de praia. Mia Dina toca seus dois acordes numa harpa invisível guiando mal e porcamente a não-história num ciclo vicioso e desprovido de narrativa. Você sonha, mas sonha mal: os passarinhos e riachinhos e nuvenzinhas e amorzinhos e passinhos e risinhos nunc saem bons o suficiente. Então, como num ensaio de teatro, Mia Dina repete tudo do início e de novo o espetáculo não sai fantástico o suficiente, então ela repete mais uma vez e mais uma e mais uma. Como eu disse, pode durar dias.
É nessa pausa entre um recontar e outro que você pode perceber Mia Dina em seu ombro. Quando pega no pulo, suas bochechas enrubescem de vergonha e ela ri seu riso amarelo. Como riria uma criança roubando doce, mas Mia Dina rouba pedaços de sua vida. Rouba o tempo que você estaria vivendo e te transforma numa fábrica de cenários fantasiosos.
Se você abana a mão para expulsá-la começa a ladainha: Mia Dina chora, implora pra ficar, e suas súplicas já vão se fundindo com novos devaneios e se você estiver com a cabeça fraquinha ela logo começa os acordinhos pobrinhos contando causinhos bonitinhos e impossíveizinhos. A realidade é dura. A vida dói. No circo mambembe de Mia Dina você é feliz pra sempre. O que fazer?
Interrupções externas enfurecem Mia Dina. Uma porta que bate, um cachorro que late, a campainha, o telefone. A fada não tolera concorrência, mas não é um perfuro de realidade que vai fazê-la sair do ombro. É necessário narrar a realidade. Narrar a lista de compras do mercado e a lembrança do natal passado e narrar a cifra da conta de luz e o cheiro do café, o movimento das costelas respirando, narrar o ônibus chegando e tudo mais que é sagrado em sua banalidade, narrar você, narrar o você real e falho. Você precisa fincar os pés com força no chão da concretude. Assim a fada da antipresença derrete em agonia, se transformando numa gosma verde e borbulhante. Urra de dor e de amargura porque sabe que ela mesma é um lembrete do áspero, duro e implacável instante presente. Ursinho morre junto; antes de se desintegrar em cinzas, lhe agradece.