embaixo da marquise

helena sarmento
2 min readSep 10, 2020

aquelas horrorosas de uniforme não sabem de nada, tec tec tec nos celulares as burras, estudam o dia todo e continuam burras, deus me livrou de ser uma coitada dessas, obrigada. eu não acordo cedo nem faço dever de casa, nunca vi nota de 100 nem beijo de mãe, não ganho bom dia nem parabéns nem feliz natal, não faço nada, não sou nada, e assim mesmo eu sou tudo que importa, bota fé? o que eu tenho é a outra coisa, bota fé. a coisa densa de cheiro forte e luz cegante, a coisa maravilhosa e terrível, os que percebem sonham comigo à noite, não me esquecem nunca. sou eu quem chora pelos pombos atropelados e os meninos de rua, pelos chinelos estourados e os filhos indesejados, eu sou a desgraça, que sou a peleja, eu sou a humilhação, eu sou o milagre, caralho, tá me entendendo? não sou drinks nem vinhos nem carro zero nem sorrisos e também não sou a redenção não, eu sou o fracasso e é esse o ponto, eu não sou o potencial nem a superação nem a jornada nem a oportunidade, não quero chance nem piedade, só me olha, só isso. me olha bem que quando tentar virar a cara e não vai conseguir, vai ficar congelado tentando entender minhas cascas de ferida e vai bater enjoo e vontade de chorar, e quando eu me cansar de te prender desapareço e você volta pra sua vidinha de merda, sua vidinha de abastecer carro e comer na meia bomba sua horrorosa de uniforme, porque eu sou bonita e você sabe, eu sou bonita com pé de toddy e ruga rachando a testa, sou sim, eu sou a pluma de cisne voando no aterro sanitário, eu sou a toda a beleza do mundo, tá me entendendo? tu vai lembrar de mim quando passar a perna em alguém e sentir no pé do ouvido as bocas te chamando de fraude, vai sim, quando o leite coalhar e tudo começar a dar errado, quando o perrengue apertar você vai lembrar da veia vermelha que eu tenho no canto do olho, das minhas unhas sujas, dos meus dentes podres. pode ir, pode desviar. eu sou o buraco que você não caiu. eu sou a pedra fundamental da montanha. eu sou você só que sem medo. eu sou a oferenda, o tributo, o sacrifício. eu sou a carne. eu sou deus.

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