mãe, posso ir aí hoje? pra dormir, só por hoje.
Mãe, me falaram que em Berlim é normal ver pessoas bebendo sozinhas nos balcões de bares, inclusive mulheres mais velhas. Você ia adorar Berlim, mãe, e eu sei que você odeia Caldas Novas. Eu também odeio Caldas Novas, mãe, odeio o desfile de abnominoplastias e de alcoolismo intergeracional e a água quente de xixi. Caldas Novas não é pra gente, mãe, é pra famílias. Caldas Novas é um erro que cometemos todo ano, mãe, uma viagem precária e infeliz. Sempre quebra alguma coisa do carro, pensa bem, e sempre acaba com você de cara amarrada recebendo olhares de pena.
Mãe, posso passar um tempo na sua casa? Só para dormir à noite. Eu chego tarde e saio de manhã cedo, durmo no sofá, você nem vai sentir que eu existo. Tudo bem, mãe, se eu dormir na cama com você? Com aquele edredom de florzinhas, mãe, posso?
O que você tinha na cabeça com aquelas viagens, mãe? Nós fingindo ser como eles, família que janta junto. Que ideia. Somos diferentes, você sabe. Não viemos com o dispositivo secreto da unidade familiar, ou ele veio pifado de fábrica. Hoje em dia podemos beber uma cerveja juntas, em silêncio, mas com uma criança você não sabia direito o que fazer, né? Você não nasceu pra ser mãe e hoje eu sei disso. Desculpe as birras, mãe, eu não sabia na época.
Lembro do terror no seu rosto quando eu vesti sua blusa de alcinhas. Eu tinha 14 anos, na época não sabia que mulheres e mães são pessoas diferentes. Não sabia o que significava aquilo para uma mulher de quarenta e poucos, que vai passar a sexta-feira vendo televisão enquanto sua blusa de alcinhas sai à noite num corpo feminino adulto controlado por uma criança. Não sabia. Descobri depois.
Mas eu, mãe, preferia aquele olhar do que o tenho de você hoje. Está magoada, com pena, irritada, cansada. De mim. Eu te odeio mas tenho esse desejo compulsivo de me aninhar no seu colo. Quero uma coisa específica: sentir seu queixo no topo da minha cabeça. Não lembro quando isso aconteceu pela última vez, espero que já tenha acontecido. Em busca dessa memória eu vou bagunçando os lugares onde a procuro como um assaltante revirando gavetas.
Mãe, posso ficar um ou dois anos? Eu vou embora assim que descobrir como pagar pela minha própria vida. Mãe, vou ficar quieta e você nunca vai trombar comigo pelo corredor. Mas mãe, você pentearia meu cabelo depois do banho? Com aquela sua escova de madeira e pelo de javali. Meu cabelo está mudando, mãe, está engrossando e armando que nem o do meu pai. Mãe, eu ainda sou jovem? O tempo está fazendo marcas no meu rosto e ele acha que eu não vejo sua ação vagarosa e constante. Ele me vestiu de adulta e estou interpretando esse personagem. Que nem você na beira da piscina interpretando o papel de uma mãe.
Mãe, você não é esse tipo de mãe, mas eu queria um pouco de colo de mãe. Chorar nos braços da minha mãe, sabe, consolo de mãe. Você pode fingir um pouco que é essa mãe, mãe? Só por um tempo? E depois voltamos a ser duas mulheres separadas, cada uma com sua vida, que se conhecem apenas porque uma saiu da outra. Aí você pode ir pra Berlim beber sozinha sem sentir vergonha e eu posso voltar a fingir que sou adulta. Talvez em Caldas Novas.