não importa, não importa
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Um espantalho ganhou vida e se move pelas fileiras do supermercado. As pernas sem joelho não são feitas para andar. Mas andam. Um dos braços agarra a cestinha de plástico como um cavalheiro toma o braço de uma dama. O outro braço não é um braço, mas um macarrão de piscina balançando no ritmo dos passos. O rosto ninguém viu.
Mas calma, alguém vestiu meias e cueca. Depois vestiu uma blusa inconclusiva e jeans velhos, mas de marca boa. Tudo cheira a Downy e tudo está seco, quase rijo. Ferro de passar fumegante, família, empregada doméstica. Não há informação no sapato ou tênis.
Talvez o espantalho tenha cruzado com Downy nos corredores. O macarrão de piscina joga na esteira do caixa um saco de sal e uma garrafa de álcool de cozinha, alguém vê e alguém fala não deixa passar não moça ele vai beber esse álcool ele vai beber esse álcool e o sal pra disfarçar o gosto chama o segurança. O espantalho resmunga ininteligível com a boca frouxa, a língua pesando muitos quilos.
Os escritores são infelizes porque o que a ficção promete a realidade dá. Os escritores compram vinho no supermercado. Ou uísque. Em semanas especialmente difíceis, vodca. Os muito infelizes ou muito pretensiosos(dá no mesmo) compram cervejas espessas. Destas, Downy pegou duas garrafas, foi para a fila do caixa rápido e abriu o bloco de notas com o celular encostado no umbigo.
Os escritores são pessoas vaidosas mimadas de mau caráter; pessoas que se acham donas do que veem do que tocam e do que ouvem; que se acham especiais; que se acham importantes; que se acham os senhores da linguagem quando usam ponto e vírgula; que se acham também espantalhos, que se acham espantalhos especiais com gosto refinado para cerveja, que acham que entendem, que acham que sentem, que acham que bebem.
Os escritores fazem careta e beicinho fingindo capturar os blocos estruturais do universo. A realidade é impossível de ser descrita e não há diferença nenhuma entre mentir e inventar histórias. A ficção é desonesta e precisamos de honestidade, talvez. Escritores são inúteis. A literatura não é mais necessária nem para entretenimento. A literatura não existe mais e os coitados que insistem nela são insuportáveis. Ler e escrever são performances de gente feia e burra que se acha bonita e inteligente. O espantalho valsa supermercado afora sob olhares curiosos.
Ninguém no supermercado chorou pelo espantalho. Talvez ele tenha chorado por si. Talvez tenha finalmente conseguido o que queria. Talvez o álcool fosse para limpar uma mesa de vidro e o sal tivesse acabado em casa. Talvez tivesse casa. Talvez muita coisa então nenhum talvez importa. Possibilidades infinitas do desenrolar dos fatos não importam. Downy não viu nada, estava escrevendo no celular.