se não dá pra esquecer, :

helena sarmento
2 min readDec 1, 2021

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As memórias crescem debaixo de carapaças até que estas se rompem e dão lugar a outra. A nova carapaça tem um período de certa maleabilidade que deve ser aproveitado imediatamente antes que se solidifique, e que pode servir para encaixar novos elementos tonais à memória.

Aos erros nunca aprendidos e repetidos à exaustão, se pode adicionar uma trilha sonora circense e, assim, torna-se um show de palhaços. Um episódio de humilhação, por exemplo, adicionando um toque de rancor transforma-se facilmente na cena de gênesis de um vilão (no caso, você). Às lembranças de infância, confusas como só elas, cabe transfigurar as roupas em trajes monárquicos, as paredes em pelúcia, as pessoas em animais. Ou talvez só um tema fundo-do-mar onde as vozes viram apenas o som de bolhas.

Infelizmente é apenas possível adicionar significados, sendo impossível apagar os pré-existentes. Os antigos dizem que três copos de uísque toda noite podem ajudar a remover alguns aspectos, mas é um método de risco. Um grande mistério a casualidade dos rompimentos de carapaças: estava lá a memória, calma e cascuda, quieta, e de repente começa a crescer e crescer até que destrói o exoesqueleto e você tem que lidar com ela novamente, tratá-la, moldá-la. Deixá-la em paz tampouco garante que manterá a mesma forma de antes. Tentar esmagá-la para que morra é pior ainda, porque a nova carapaça pode nascer deformada e monstruosa.

Não há na humanidade nada que fure a armadura de memórias sem que haja consequências desastrosas. Também é inútil tentar induzir uma troca de casca puxando as placas de certas memórias, engordá-las pra que aumentem e rompam, alterá-las à força. Algumas memórias já chegaram em sua forma final e não há o que fazer além de observá-las(e beber uísque).

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