O milenar ritual das amizades femininas
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Eu tinha 15 ou 16 anos. Uma festinha de dia das bruxas. No Sudoeste ou na Asa Norte, não lembro. Nessa época eu já tinha fama de vagabunda, eu acho. Que a lua estava cheia, tenho certeza.
Fiquei milênios sentada até que uma onda de coragem me fez querer ir dançar. Quando levantei, menstruei. Desceu ali mesmo nos meus shorts jeans, aquele jeans clarinho, sabe. Na hora que senti, corri de ré até uma parede e fiquei encostada nela pensando em como Deus é ruim. Fui me arrastando pela parede até o banheiro, o fio quente escorrendo pela coxa e embebedando os nós da meia arrastão(estava na moda), entrei num box e devo ter chorado um pouco. Lavei os shorts na água da privada com a certeza de ser a menina mais porca do Brasil, sequei com papel higiênico e limpei do meu corpo tudo que pude, mas por baixo da porta conseguia ver uma gota de sangue no meio do banheiro.
Pensei no rastro de sangue que podia ter deixado atravessando a festa e entendi que Deus não existe. Se existe não olha pelas vagabundas de arrastão, o que não faz sentido pois somos feitas para se olhar. Sentei na tampa do vaso com as pernas encolhidas e calculei ficar ali mais umas quatro horas, que era tempo da festa acabar e eu sair de lá. Alguém bateu na porta do box, toc toc. Depois de novo, toc toc, e vi um cabelo cacheado encostando no chão. Era Karen. Uma esquisitinha do meu ano, que ia de óculos escuros para a aula e usava folhas de caderno trançadas como pulseira. A única vez que tínhamos nos falado foi uma vez na biblioteca. Ela esbarrou em mim, pediu “foi mal” e seguiu dedilhando os livros da minúscula sessão de ficção.
Sussurrando, Karen perguntou se estava tudo bem. Não respondi. E pediu pra entrar. Em outra onda de coragem, abri a porta pra ela, a puxei pra dentro numa intimidade-súplica e expliquei a situação. Virei de costas pra ela avaliar a bola vermelha que estampava o tecido; Karen riu, senti minhas bochechas esquentarem e, antes que eu implodisse de desespero, falou: “Tira aí”. Me despi tremendo. “Me dá”, e entreguei sem questionar. Aí Karen tirou a própria calça e vestiu meus shorts. Não entendi de primeira. Depois lembrei que ela era esquisita e protestei e implorei que ela não saísse do banheiro daquele jeito. “Então eu vou de calcinha” e começou a se desabotoar. Eu disse que estava tudo bem, que mais tarde eu ia sair quando a festa acabasse, agradeci a ajuda, me despedi. Ela virou os olhos, suspirou, vestiu a calça e saiu num rompante.
Voltei a sentar no vaso e me resignei a esperar o fim da festa. Contei as pastilhas de azulejo e balancei os shorts com esperança de secá-los. De repente, a luz apagou e a música parou de tocar. Caminhei devagar até a porta do banheiro e olhei lá fora: a energia tinha caído e todo mundo estava com as lanternas dos celulares ligadas. Corri como um guepardo até as escadas de incêndio, os shorts molhados pingando e, me dando o susto dos sustos, Karen me pegou pelo ombro e falou, urgente e séria: “Espera, vou pegar bebida”. A meia arrastão(estava na moda) ficou no lixo e foi resgatada pela adolescentes de hoje em dia, ao que parece; as esquisitinhas e vagabundas, pelo menos, tenho visto usando. A tradição se repete.