o pedacinho despelado
Elas se comunicam. Acham que eu não vejo mas vejo, eu tô sempre aqui na janela da cozinha ó. De olho. A vizinha de cima e a do prédio em frente. Eu sei.
Os horrorosos prédios cara a cara como dois aquários enfileirados, os peixes de um observando os do outro. Dá pra ver tudo. Vejo o casal estrangeiro brincando e correndo pela casa, vejo a doméstica assistindo tevê, vejo as crianças quebrando coisas e vejo a maldita vizinha. Dá pra ver tudo entre lá e cá, mas minhas janelas eu preservo. A cortina da sala é a mais grossa que tem. Pesada. Fechadinha não entra um raio de sol. Está sempre fechadinha. Na cozinha encapei a janela com película refletora e por divina coincidência despelou um pedacinho bem na altura da minha cadeira. Vejo tudo lá fora pela fresta natural que Ele criou. Me fez à Seu capricho, vigilante e judiada. A mangueira centenária é meu anjo da guarda: bem na frente da minha vista, esconde minha intimidade entre as folhas. Ele pensa em tudo.
A fresta cria um feixe de luz muito violento pela manhã. Parece um mini-holofote que cruza a cozinha; Pitoco toma sol nele todos os dias. Quando o sol cai e o holofote some ele faz suas necessidades, vai comer, volta pra nossa cama e deita lá até o dia seguinte. Desculpa, Pitoco, hoje não vamos passear.
À noite, a cidade fica muda e as luzes ficam cegas e eu fico desperta. O silêncio áspero é apenas interrompido pelas sirenes da polícia nos furdunços desse bairro que só Deus. É quando a vejo falar. Fala tão alto que quase escuto a voz, a voz que não reconheço mas sei que existe e parece conhecer cada detalhe da minha casa. Sinto um arrepio maligno na espinha e um medo demoníaco mas principalmente, sinto ódio da vizinha da frente. Ela sabe.
Ela fala por telefone na janela enquanto olha fixamente pra mim. Quer dizer, pra minha janela. Da frestinha eu vejo seus olhos me fuzilando. A mangueira me protege. Pitoco desaprendeu a usar os tapetes higiênicos, a casa fede a xixi e cocô de Pitoco. Tudo bem. Vamos descer.
O fruto da mangueira é uma manga-rosa túrgida, brilhante, cheirosa. Mangas perfeitas. Altíssima, farta, robusta, uma mangueira que parece desconhecer o amarelar das folhas. Há um buraco em seu tronco, mas sua fibra é tal que ele se torna um pequeno infortúnio. As flores anunciam a nova leva de delícias que está por vir. Já já estará cheia.
Ninguém mais vê a vizinha. Estou sozinha nessa luta, sozinha contra quem ou o que quer que seja que está tentando me acobarar. Sozinha. Sinto que vai me puxar para o escuro e rasgar em pedacinhos até que eu não seja mais nada. Sinto não. Eu sei.
A cara da vizinha se deforma enquanto ela fala. O nariz cresce, a sobrancelha engrossa. É o próprio inimigo operando o corpo dela. E eu sei com quem ela fala. Por Deus eu sei. É com a do toc toc. Eu sei porque a de lá liga e a de cá vem correndo pra casa, e quando chega a outra desliga o telefone e sai da janela. Se revezam. Mas não chamo a polícia para ninguém achar que sou louca.
Eu não sei quanto tempo mais vou aguentar isso, não posso continuar assim, Pitoco arranca tufos de pelo e a orelha está encarecando aos galopes, gane, mija, chora. Passear, meu filho. De manhã cedo, vamos.
Nos galhos médios da mangueira um casal de joão-de-barro sobe as paredes da sua casinha. O canto pueril não é nada menos que a obra prima Dele. Filhotes estão pra chegar. Quero ver os ovinhos. Pitoco, volta aqui. Voltou com uma mangona na boca. O cão chupando manga. Que graça. Acho que o sol me faz bem.
Agora tô na rua. E agora? Táxi? Fazer alguma coisa. Levar no veterinário. Ainda é vivo o doutor? Será fechou a clínica? Vamos. O porteiro chama o táxi pra mim. Porteiro novo, não conhecia. Está rindo de quê, criatura? Ah. primo do antigo.
Pitoco está bem, só precisa cortar a orelha fora porque é câncer. Ah, tá. Não é câncer. É porque ele coça que nem doido. Mas eu volto pro retorno. Gostei. Tem a padaria. Vou. Fui. Comi pão de queijo, cappuccino, suco de laranja, mas choveu. Voltei pra casa e não tinha mais nada.
Voltei e derrubaram a mangueira, estava podre por dentro, e o ninho ninguém viu, e gritei e chorei e não acreditei quando vi o toco do meu anjo da guarda e seus pedacinhos cortados em pilhas, meu Deus, por quê, minha alegria, meus ovinhos, eu choro, o primo do porteiro olha, os assassinos cortadores de mangueira me olham, o mundo acaba, Jesus morre, estou sozinha, tudo é importante, a cortina a cozinha a padaria o pão de queijo, meu Deus, o Pitoco, e subi às pressas porque moro no último andar e subi com um mau-presságio varando meus ouvidos e estava lá, é verdade, da fresta da cozinha eu vi: a vizinha da frente sumiu.
Para L