pé rachado, peito em chaga
O pequi não quer ser comido. É um abacate falso de polpa dura e rançosa, e no meio a bolota-semente é coberta de uma carninha com cor de venenosa até boa de comer, mas só pra despistar mesmo, e embaixo dela tem espinhos muito finos, ótimos pra espetar a língua e ficar horas puxando com a pinça, e só depois dos espinhos está o fruto: uma castanha branca cheia de nódoa, mas que tostada solta cheiro doce e o gosto proibido das coisas selvagens. Não foi maçã que Eva comeu, foi pequi.
Ele que me contou isso sabia muito sobre tudo do cerrado: menino criado correndo de caburé e buraqueira, bicada na orelha e no calcanhar, sabia do sol, do vento dos fantasmas. Olhava muito pros buritis vaidosos, sempre se admirando do espelho do córrego, e sabia que eram fantasmas. Um bando de velhotes, quase dez metros cada, proseando de pé n'água durante 200 anos. Estavam vivos, sim, mas há tempos não brotava um novo na redondeza. Quando caírem nunca mais vai ter buriti por lá. Os avôs vão se esquecendo como se conta a lenda antiga e as novas gerações nunca a aprenderão. Assim as histórias morrem e os buritis também. Ainda vivos já estão mortos. Ficam por aqui esses profetas da estupidez só pra nos lembrar que este é um mundo de desperdício e esfacelamento.
Ele que me contou isso tinha uma chaga endurecida no meio do peito, um buraco de coruja chamuscado pela brasa dos cartões de crédito e assinaturas e comícios, do dinheiro que transforma chácaras em condomínios sem brilho, fúria, fúria é o que ele tinha, fúria, fúria fúria fúria fúria. É possível dizer que o ódio era do dinheiro, mas na verdade era do fogo. Vinte anos, vinte incêndios. Todo mês de setembro ele renascia das cinzas. Não foi na Grécia que voou a fênix, foi no Goiás.
Ele que me contou isso chorou muitas vezes pela morte do belo, pela morte do feio e pela sua própria. Lamentou as repetições do destino, principalmente elas: aquilo que dá errado mil vezes e dará mais uma, os buritis narcisos se afogando em extinção, o sol, o vento e os fantasmas, de novo, de novo!
Parou de chorar, eventualmente. Mas continuou em meio às cinzas roendo a carne do pequi, sabendo que aquele não era o fruto, sabendo o gosto do fruto em si e a borda de espinhos que o cercam, sabendo tudo, roendo o falso.
Para Edu